O Tiago.
Quando viu a Margarida pela primeira vez, não conseguiu esconder a preocupação. Tinha-nos levado mesmo muito a sério.
Estudou todas as dezenas de documentos que enviámos e viu todos os vídeos que fizemos: Aqueles em que a Margarida apresentava os primeiros bloqueios da fala; os das primeiras crises convulsivas – que a Inês, heroicamente conseguiu gravar só para mostrar aos especialistas; os das crises motoras; os que mostravam pequenos pormenores físicos quase imperceptíveis e, aqueles que mostravam a Margarida (ainda) sem problemas, a cantar e a dançar.
Quando entramos no gabinete em que ele estava com vários médicos para observarem a M., ele sabia tudo, como se a Margarida “fosse dele” há anos, e a sua capacidade de raciocínio e inteligência envolveram-nos numa segurança e conforto até então inexistentes.
Com uma simplicidade desconcertante e com uma atitude revestida de verdade e de compaixão, foi-nos preparando para algo de muito mau. E foi!!
Chegou a ver a Margarida várias vezes, ligava para Coimbra, nas suas férias, de dia, de noite, com a simples pergunta:
– Como está a nossa princesa?
Até ao dia em que entendeu que a Margarida ia precisar de cuidados de proximidade. Aconselhou-nos a arranjarmos um médico na área de residência. A princípio não quisemos…. porque ele era especial. Voltou a insistir, pela Margarida. Não tivemos hipótese de recusar o que para ele era um preceito essencial.
Se não fosse o enorme carinho e competência com que fomos recebidos nas “doenças metabólicas”, em Coimbra, a sua falta teria sido insuportável.
Durante o seu acompanhamento à Margarida, perguntou várias vezes por nós:
– Como estão os pais? E a Mana?
– Eu também estou aqui pra isso, dizia.
Sentimos que ali estava o futuro, o futuro suportado no propósito de quem cuidada das crianças doentes e das suas famílias. A compreensão da dimensão da dor familiar e as pequenas ações que dentro do normal e necessário distanciamento clínico podem fazer o paciente e a família sentirem-se mais confortáveis e seguros.
A uma certa altura de um dos seus seus relatórios clínicos apresenta esta frase que achei de uma “feliz” invulgaridade: “A Margarida está integrada numa escola de ensino especial com apoios. Parece-me feliz e adaptada”.
Era a primeira vez que eu via a palavra felicidade escrita num relatório clínico. Esta preocupação pelo bem estar e pela “felicidade” traduz a sua dimensão humana e o respeito que tem pelo doente.
Tudo isto está fortemente presente num artigo de opinião que escreveu na sua página pessoal quando se discutia a eutanásia e que me deixou tremendamente orgulhoso de o ter conhecido e de o ter tido como médico da Margarida e da nossa família:
“Eutanásia? Ainda não sei o que pensar…
Sou médico desde 2003. Todos os doentes que vi caminham comigo para o destino inexorável da deterioração física e intelectual que conduz à morte. Apesar dos avanços tecnológicos e científicos das últimas décadas, este é o destino certo de todos os seres humanos.
Nestes anos, e principalmente desde que me dedico à Neuropediatria já diagnostiquei e acompanhei muitos doentes com doenças graves, frequentemente com enorme sofrimento num caminho inevitável para a morte. Uma morte particularmente inesperada e paradoxal já que este não é o desígnio expectável de uma criança.
Já falei com pais que me trazem os filhos nos braços com a esperança de uma cura que não consigo oferecer. Já tive de conviver com o sofrimento de famílias que vêm os seus filhos definhar. Vi miúdos a andar na minha consulta brincando inocentemente na sala de espera enquanto eu comunicava à família o destino sombrio que os levava em meia dúzia de meses a vegetarem numa das camas da enfermaria do meu serviço.
Estes pais e estas crianças deram-me muito mais do que eu alguma vez lhes possa oferecer. Com eles aprendi a ter esperança, a calar o sofrimento, a viver com uma alegria imensa a pequena vitória que é o acordar de cada dia. Estas vidas são diferentes da minha… Provavelmente são diferentes da sua. Ainda hoje não sei onde arranjam energia para continuar, mas o certo é que eles a encontram.
Já houve pais que secretamente sussurraram que preferiam que o sofrimento dos seus filhos acabasse, curiosamente nenhuma criança me disse que queria partir. A maioria tem planos e brinca ao faz de conta como as minhas filhas. Sonham o que querem ser quando forem grandes, mesmo quando no íntimo sabem que nunca vão crescer.
Estes são verdadeiros Peterpans que habitam na minha memória sempre meninos.
Neste percurso já decidi várias vezes limites aos tratamentos da medicina. Já travei processos de medicalização extrema que prolongam artificialmente uma vida que quer descansar. Já participei em reanimações pouco vigorosas que suavizam com calma os desígnios da humanidade. Já declarei mortes cerebrais em corações que ainda batem, permitindo que os órgãos possam fazer renascer outras crianças que estavam a morrer. Já assisti aos últimos suspiros. Já aumentei terapêuticas analgésicas sabendo que nesta escalada os meus doentes podiam esquecer-se de respirar…
Também já tive surpresas. Doentes que parecem condenados, e que de um momento para o outro recuperam e adquirem a ousadia de voltar a sonhar. Às vezes visitam-me na consulta, dão-me um beijo ou um desenho e envergonho-me de ter desejado um dia que o seu sofrimento tivesse terminado anos antes.
Depois de viver tudo isto, poderíamos pensar que tenho uma visão lúcida e clara da eutanásia. Mas sinto exatamente o contrário. Hoje estou mais confuso do que estava nos bancos da faculdade onde poderia achar que a resposta era obvia.
Hoje espanto-me com as certezas fervorosas com que defensores e opositores da eutanásia gritam as suas razões…
Honestamente eu não consigo definir fronteiras. Independentemente de achar que a vida é um bem supremo consagrado na constituição, não concordo com os médicos que se arrogam a deuses e prolongam a vida num exercício de mestria.
Sinto na prática que há momentos em que a vida se extingue e o meu papel é ajudar a que tudo decorra sem lágrimas desnecessárias… Mas não consigo consagrar ou proibir em decretos…
Mas isso sou eu que não percebo nada disto….”
Tiago Proença dos Santos, neuropediatra no Hospital de Santa Maria/CHLN