Pele azul, reclinável, levantava um apoio dos pés quando me encostava. Sem arestas frias nem bicudas, redonda o suficiente. Deu-me algumas horas de sono, bom e mau. Durante 10 dias desenhou a silhueta do meu corpo e o da Inês, em períodos alternados de quem se reveza em mudança de turno. Um dia eu, um dia a ines, uma noite eu, uma noite a ines, enquanto a Margarida recuperava.
Esquecemos naqueles dias de que poderíamos ser um casal. Era impossível. Apenas nos encontrávamos na transferência de turno e por pouco tempo.
A poltrona era o meu conforto, a minha mesa de refeições, o meu posto de trabalho, a minha cama, o meu porto de abrigo, o meu relaxe e a minha principal companheira. Tornou-se a minha confidente.
Sem esperar resposta confidencie-lhe que a doença da Margarida não tinha cura, era neurodegenerativa e progressiva e o expectável percurso das infeções respiratórias tinha acabado de começar. Não me deu as boas vindas mas senti-me, infelizmente, bem vindo.
Acolheu-me, deu-me descanso, deu-me sono, deu-me dormida.
Falei-lhe dos meus pavores e do meu cansaço, falei-lhe da incerteza do futuro, falei-lhe de coisas que nunca tinha falado a ninguém e não voltarei a falar senão a ela. Ouviu-me serena.
Falei-lhe da minha constante luta interior entre ter que ser positivo e continuar a ser inconformista na luta pela Margarida e pelos outros e, a possibilidade de me deixar lamber pelas labaredas da desistência, da tristeza e dizer “já chega!”
Enquanto a poltrona continuava imóvel, sem me reprimir por nada do que lhe dizia, eu continuei a falar:
Perguntei-lhe quantas mães e pais se sentaram ali e nela dormiram antes de mim? Quantos dias seguidos? Terão tido os mesmos pensamentos? Rezaram ó seu Deus? Pediram ajuda? Simplesmente não pensaram? Trabalharam? Riram? Choraram? Assumiram invencibilidade? Fizeram promessas? Juras? Tiveram ataques de fúria e de raiva? Arrependimentos? Conversaram com ela? Simplesmente dormiram? Pediram clemência? Pediram para desistir? Pediram força para continuar? Pediram paz? Pediram milagres? Pediram “o Fim”?
Não me respondeu mas imaginei a resposta…
Perguntei-lhe como será a próxima vez que ali me sentar? Mas a essa pergunta, nem quis que me respondesse.
Contei-lhe que sempre usei como estratégia não pensar demais no futuro mas, ali, sozinho, o ato de “não pensar” parecia ser impossível. O tempo e o silêncio eram impropicios à abstração.
Lembrei-me do “Crime e Castigo” em que o jovem Rashkolnikov, no meio dos seus conflitos morais, profere a frase de que “pensar demais era um doença”.
No momento em que as rotinas clínicas recomeçavam deixava de pensar. – Era tempo de uma aspiração pulmonar, dos medicamentos, da troca de fraldas, dos aerossóis, de um carinho, e hora da Margarida dormir.
De seguida eu voltava a sentar-me recomeçando a conversa com a minha poltrona e recomeçavam os pensamentos… maus por sinal.
Dostoiévsky tinha razão.
Sentado na poltrona, pedi-lhe ajuda, estava exausto de pensar. Ela, na sua pele de cor azul deu-me sono para só voltar a pensar no dia seguinte com um espírito renovado de quem acorda para um novo dia e para um novo futuro, positivo por sinal.